O guia de turismo Samuel Pedro Basílio, índio da etnia Baré,
recupera voluntariamente áreas degradadas da Floresta Amazônica.
Samuel Basílio, guia de turismo na Amazônia, mostra como
fazer um abrigo para passar a noite no meio da floresta.
Sobrevoar o coração da Floresta Amazônica é estender o olhar
por um mosaico de verdes, de uma incrível diversidade de tons e texturas. Da
janela do avião – adiante ou atrás, à direita ou à esquerda – a floresta some
no horizonte. Pende ora para o verde musgo, ora para o equilíbrio claro-escuro,
interrompido aqui e ali por um salpicado de amarelo, um punhadinho de rosa e
raros vermelhos.
Nada rouba a impressão de infinito. As áreas ocupadas pelas
cidades e pela degradação ainda parecem pequenas face à extensão da floresta.
Assim, falar em recomposição da Floresta Amazônica pode soar como algo
desnecessário. Sobretudo quando essa é a conversa de um índio que mora em Manaus
e trabalha como guia de turismo em regiões relativamente preservadas, no
coração da floresta, como o rio Negro e o lago Tracajá.
“Algumas pessoas realmente acham que a floresta é imensa, é
infinita. Mas não é verdade. Eu trabalho como tradutor e já acompanhei muitas
equipes de reportagem, além dos turistas. Muitos clientes falam da extensão dos
desmatamentos e da importância do reflorestamento”, conta o guia de turismo
Samuel Pedro Basílio. “Isso me deu outra visão, passei a me preocupar em
reflorestar as áreas degradadas.”
Com a orientação do amigo Max Maia, proprietário do Amazon
Turtle Lodge, o guia de turismo passou a trabalhar como voluntário em plantios
de mudas de árvores nativas. “Conseguimos mudas de castanha, mogno, andiroba e
muitas outras árvores produtivas junto ao Horto Municipal de Manaus. Algumas
organizações não governamentais também ajudaram e nós ainda começamos a
produzir nossas mudas, a partir de sementes coletadas ali ao redor do hotel”,
relata Samuel.
A iniciativa já tem três anos e se transformou numa das
atividades oferecidas aos hóspedes do lodge, afirma Max Maia. Localizado junto
ao lago Tracajá e ao rio Mamuri, a sudoeste de Manaus, o hotel de selva recebe
cerca de 1.700 hóspedes por ano, com um mínimo de cinco dias de estadia. “Noventa
e nove por cento dos hóspedes são estrangeiros e os poucos brasileiros que vêm
são de São Paulo. O plantio de mudas ajuda a recuperar a mata e a fertilidade
do solo, especialmente nas áreas onde foram feitas muitas queimadas, em antigas
roças nas proximidades do hotel”, avalia.
O hóspede pode escolher entre 30 e 40 espécies de árvores
diferentes e fazer o plantio após a trilha de mata. Alguns grupos de
estrangeiros, montados por organizações ambientalistas em seus países de
origem, já viajam com o propósito de plantar. Estes grupos, então, trabalham
mais pesado durante pelo menos dois dias e só depois saem para os passeios.
Com base na experiência adquirida nas cercanias do hotel de
selva, Samuel Basílio passou a incentivar outros ribeirinhos a recuperar
antigas roças com o plantio de árvores nativas. Na conversa, ele explica as
vantagens de replantar nas áreas degradadas, em vez de sair derrubando floresta
para abrir novas roças. “Fazemos o plantio tanto em pastos enfraquecidos, onde
o capim já não tem vigor e não sustenta o gado, como em áreas de roça
degradadas”, conta. Se o ribeirinho dá a autorização para o plantio em sua
área, o guia ensina a abrir as covas, adubar, plantar e ainda dá assessoria
para a futura manutenção das mudas, que podem levar de 10 a 15 anos para
começar a produzir, que é o caso da castanheira.
“Com o passar do tempo, esses ribeirinhos vão se tornar
produtores de copaíba, andiroba, castanha. E ainda temos um projeto de plantio
de açaí nas encostas”, enumera o índio convertido em plantador de florestas.
Em seus dias de folga planta sementes como as de andiroba,
árvore de onde se extrai óleo repelente de insetos e subprodutos cosméticos e
medicinais
De agricultor a plantador de árvores
Apesar de ter nascido em Manaus há 42 anos e depender da
cidade grande para ter trabalho, Samuel mora com a mulher e um casal de filhos
em Rio Preto da Eva, a 80 quilômetros da capital amazonense. Índio da etnia
baré, criado como cristão, ele aprendeu a língua geral em casa, quando pequeno.
A língua geral amazônica, vale lembrar, é o nheengatu. Deriva do tupi-guarani
e, desde o tempo das missões jesuítas, serve como língua de comunicação entre
índios e não índios e entre índios de diferentes troncos linguísticos. Está
para os índios e caboclos como o inglês está para os viajantes internacionais
modernos.
“Aos 13 anos, passei uma temporada em uma aldeia indígena da
etnia tukano. Minha avó falava muito da cultura indígena, da vida na aldeia,
mas não queria que eu fosse para não criar dificuldades na escola”, recorda
Samuel. Naquela época – início dos anos 1980 – o ensino em língua indígena
ainda não havia sido implantado e as crianças que vinham de aldeias indígenas e
não falavam português em casa tinham problemas para se adaptar. Agora, diversas
cidades com grande contingente de indígenas já têm aulas em dois idiomas, caso
de Rio Preto da Eva.
“Tinha um amigo da etnia tukano que conheci em Manaus, o
Francisco, e ele fez o contato com o chefe da aldeia. Expliquei minha opção e
ele disse que eu podia ficar se passasse por uma prova de iniciação. Fui para a
floresta sem roupa e tive que sobreviver sozinho por 20 dias. Foi uma das
coisas mais pesadas pelas quais passei”, afirma. “Antes de sair, só aprendi a
confeccionar material de sobrevivência. Depois, já na mata, sabia que estavam
me observando, mas não tinha como fazer contato.”
Durante a prova, o adolescente Samuel não conseguiu fazer
fogo, então o jeito foi comer frutas, peixe cru e ovos de aves. “Fui me
adaptando, tinha experiência do sítio do meu pai, onde pescava e caçava, mas
ali estava sem linha, sem anzol e sozinho, isolado. À noite tinha a pressão
psicológica, ouvia vozes, sabia que tinha onça, cobra, porco do mato. E eu não
tinha faca, não tinha como pedir ajuda. Cheguei ao limite do que podia
suportar”, lembra. Mas foi aprovado. “Quando estava para desistir, felizmente
acabou a prova!”
O jovem, então, deu seu mergulho na cultura indígena.
“Aprendi uma lição de vida, muito além das minhas expectativas”, comenta.
“Também aprendi coisas práticas como olhar as crianças e fazer os brinquedos de
palha com os quais eles brincam, observar os animais e fazer abrigos para
passar a noite.”
Samuel permaneceu na aldeia por um ano e oito meses. Aí
bateu aquela saudade da família e ele resolveu voltar para casa, para junto do
irmão e das cinco irmãs. Seus pais viviam como agricultores no interior.
Plantavam alimentos de subsistência e mandioca para fazer farinha, cujo
excedente era eventualmente vendido. Comercializavam também algumas frutas,
sobretudo laranja, limão e abacaxi. Samuel ajudava na roça de vez em quando,
mas a escola sempre foi sua prioridade. Cursou até o Ensino Médio em Rio Preto da
Eva e em seguida mudou-se para Manaus para fazer a faculdade de administração.
A facilidade em aprender línguas logo abriu caminho para o
trabalho como guia. Samuel fez um curso intensivo de inglês e passou a
acompanhar turistas estrangeiros, pesquisadores e equipes de reportagem
internacionais. As conversas sobre desmatamento e conservação ampliaram seu
horizonte e trouxeram novos conceitos para sua realidade de morador da
Amazônia. E várias dessas conversas evoluíram para propostas de apoio a
iniciativas de recuperação de áreas degradadas.
Assim como aconteceu com ele mesmo, Samuel acredita na
conscientização e na mudança de atitude de outros amazônidas: “O turismo me fez
enxergar o valor da floresta. Minha visão, antes, era de agricultor, só sabia
abrir novas áreas para plantar mais adiante. Não tinha ideia de que era
possível ganhar dinheiro com o que a floresta já tem e que podia plantar
visando o longo prazo, para ter um futuro melhor”.
Fonte: National Geographic
De agricultor a plantador de árvores