quarta-feira, 18 de julho de 2012

O índio que refloresta a Amazônia


O guia de turismo Samuel Pedro Basílio, índio da etnia Baré, recupera voluntariamente áreas degradadas da Floresta Amazônica.

Samuel Basílio, guia de turismo na Amazônia, mostra como fazer um abrigo para passar a noite no meio da floresta.

Sobrevoar o coração da Floresta Amazônica é estender o olhar por um mosaico de verdes, de uma incrível diversidade de tons e texturas. Da janela do avião – adiante ou atrás, à direita ou à esquerda – a floresta some no horizonte. Pende ora para o verde musgo, ora para o equilíbrio claro-escuro, interrompido aqui e ali por um salpicado de amarelo, um punhadinho de rosa e raros vermelhos.

Nada rouba a impressão de infinito. As áreas ocupadas pelas cidades e pela degradação ainda parecem pequenas face à extensão da floresta. Assim, falar em recomposição da Floresta Amazônica pode soar como algo desnecessário. Sobretudo quando essa é a conversa de um índio que mora em Manaus e trabalha como guia de turismo em regiões relativamente preservadas, no coração da floresta, como o rio Negro e o lago Tracajá.

“Algumas pessoas realmente acham que a floresta é imensa, é infinita. Mas não é verdade. Eu trabalho como tradutor e já acompanhei muitas equipes de reportagem, além dos turistas. Muitos clientes falam da extensão dos desmatamentos e da importância do reflorestamento”, conta o guia de turismo Samuel Pedro Basílio. “Isso me deu outra visão, passei a me preocupar em reflorestar as áreas degradadas.”

Com a orientação do amigo Max Maia, proprietário do Amazon Turtle Lodge, o guia de turismo passou a trabalhar como voluntário em plantios de mudas de árvores nativas. “Conseguimos mudas de castanha, mogno, andiroba e muitas outras árvores produtivas junto ao Horto Municipal de Manaus. Algumas organizações não governamentais também ajudaram e nós ainda começamos a produzir nossas mudas, a partir de sementes coletadas ali ao redor do hotel”, relata Samuel.

A iniciativa já tem três anos e se transformou numa das atividades oferecidas aos hóspedes do lodge, afirma Max Maia. Localizado junto ao lago Tracajá e ao rio Mamuri, a sudoeste de Manaus, o hotel de selva recebe cerca de 1.700 hóspedes por ano, com um mínimo de cinco dias de estadia. “Noventa e nove por cento dos hóspedes são estrangeiros e os poucos brasileiros que vêm são de São Paulo. O plantio de mudas ajuda a recuperar a mata e a fertilidade do solo, especialmente nas áreas onde foram feitas muitas queimadas, em antigas roças nas proximidades do hotel”, avalia.

O hóspede pode escolher entre 30 e 40 espécies de árvores diferentes e fazer o plantio após a trilha de mata. Alguns grupos de estrangeiros, montados por organizações ambientalistas em seus países de origem, já viajam com o propósito de plantar. Estes grupos, então, trabalham mais pesado durante pelo menos dois dias e só depois saem para os passeios.

Com base na experiência adquirida nas cercanias do hotel de selva, Samuel Basílio passou a incentivar outros ribeirinhos a recuperar antigas roças com o plantio de árvores nativas. Na conversa, ele explica as vantagens de replantar nas áreas degradadas, em vez de sair derrubando floresta para abrir novas roças. “Fazemos o plantio tanto em pastos enfraquecidos, onde o capim já não tem vigor e não sustenta o gado, como em áreas de roça degradadas”, conta. Se o ribeirinho dá a autorização para o plantio em sua área, o guia ensina a abrir as covas, adubar, plantar e ainda dá assessoria para a futura manutenção das mudas, que podem levar de 10 a 15 anos para começar a produzir, que é o caso da castanheira.

“Com o passar do tempo, esses ribeirinhos vão se tornar produtores de copaíba, andiroba, castanha. E ainda temos um projeto de plantio de açaí nas encostas”, enumera o índio convertido em plantador de florestas.

Em seus dias de folga planta sementes como as de andiroba, árvore de onde se extrai óleo repelente de insetos e subprodutos cosméticos e medicinais



De agricultor a plantador de árvores

Apesar de ter nascido em Manaus há 42 anos e depender da cidade grande para ter trabalho, Samuel mora com a mulher e um casal de filhos em Rio Preto da Eva, a 80 quilômetros da capital amazonense. Índio da etnia baré, criado como cristão, ele aprendeu a língua geral em casa, quando pequeno. A língua geral amazônica, vale lembrar, é o nheengatu. Deriva do tupi-guarani e, desde o tempo das missões jesuítas, serve como língua de comunicação entre índios e não índios e entre índios de diferentes troncos linguísticos. Está para os índios e caboclos como o inglês está para os viajantes internacionais modernos.

“Aos 13 anos, passei uma temporada em uma aldeia indígena da etnia tukano. Minha avó falava muito da cultura indígena, da vida na aldeia, mas não queria que eu fosse para não criar dificuldades na escola”, recorda Samuel. Naquela época – início dos anos 1980 – o ensino em língua indígena ainda não havia sido implantado e as crianças que vinham de aldeias indígenas e não falavam português em casa tinham problemas para se adaptar. Agora, diversas cidades com grande contingente de indígenas já têm aulas em dois idiomas, caso de Rio Preto da Eva.

“Tinha um amigo da etnia tukano que conheci em Manaus, o Francisco, e ele fez o contato com o chefe da aldeia. Expliquei minha opção e ele disse que eu podia ficar se passasse por uma prova de iniciação. Fui para a floresta sem roupa e tive que sobreviver sozinho por 20 dias. Foi uma das coisas mais pesadas pelas quais passei”, afirma. “Antes de sair, só aprendi a confeccionar material de sobrevivência. Depois, já na mata, sabia que estavam me observando, mas não tinha como fazer contato.”

Durante a prova, o adolescente Samuel não conseguiu fazer fogo, então o jeito foi comer frutas, peixe cru e ovos de aves. “Fui me adaptando, tinha experiência do sítio do meu pai, onde pescava e caçava, mas ali estava sem linha, sem anzol e sozinho, isolado. À noite tinha a pressão psicológica, ouvia vozes, sabia que tinha onça, cobra, porco do mato. E eu não tinha faca, não tinha como pedir ajuda. Cheguei ao limite do que podia suportar”, lembra. Mas foi aprovado. “Quando estava para desistir, felizmente acabou a prova!”

O jovem, então, deu seu mergulho na cultura indígena. “Aprendi uma lição de vida, muito além das minhas expectativas”, comenta. “Também aprendi coisas práticas como olhar as crianças e fazer os brinquedos de palha com os quais eles brincam, observar os animais e fazer abrigos para passar a noite.”

Samuel permaneceu na aldeia por um ano e oito meses. Aí bateu aquela saudade da família e ele resolveu voltar para casa, para junto do irmão e das cinco irmãs. Seus pais viviam como agricultores no interior. Plantavam alimentos de subsistência e mandioca para fazer farinha, cujo excedente era eventualmente vendido. Comercializavam também algumas frutas, sobretudo laranja, limão e abacaxi. Samuel ajudava na roça de vez em quando, mas a escola sempre foi sua prioridade. Cursou até o Ensino Médio em Rio Preto da Eva e em seguida mudou-se para Manaus para fazer a faculdade de administração.

A facilidade em aprender línguas logo abriu caminho para o trabalho como guia. Samuel fez um curso intensivo de inglês e passou a acompanhar turistas estrangeiros, pesquisadores e equipes de reportagem internacionais. As conversas sobre desmatamento e conservação ampliaram seu horizonte e trouxeram novos conceitos para sua realidade de morador da Amazônia. E várias dessas conversas evoluíram para propostas de apoio a iniciativas de recuperação de áreas degradadas.

Assim como aconteceu com ele mesmo, Samuel acredita na conscientização e na mudança de atitude de outros amazônidas: “O turismo me fez enxergar o valor da floresta. Minha visão, antes, era de agricultor, só sabia abrir novas áreas para plantar mais adiante. Não tinha ideia de que era possível ganhar dinheiro com o que a floresta já tem e que podia plantar visando o longo prazo, para ter um futuro melhor”.

Fonte: National Geographic

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