O volume de candidatos a uma vaga de voluntário em um dos
megaeventos com sede no Brasil indica que pode vir a se disseminar aqui um
hábito que está no DNA de outros países: doar o tempo em prol do bem comum
Reportagem de Gabriele Jimenez e Vanessa Cabral (Revista Veja)
Nas últimas semanas, mais de 250 000 brasileiros passaram
boa parte do tempo na frente do computador, dormindo pouco e digitando muito.
Trata-se do pontapé inicial no gigantesco processo de seleção em que meio
milhão de pessoas vão disputar 200 000 cobiçadíssimos postos de trabalho ao
longo dos próximos três anos. Tudo isso para não receber um tostão. O que atrai
essa gente toda é a chance de pendurar um crachá de voluntário de um (dois,
três) dos megaeventos internacionais com sede no Brasil. O volume de candidatos
nas duas seleções prestes a ser encerradas - a da Copa das Confederações, em
junho, e a da Jornada Mundial da Juventude, em julho - é indício de que pode
vir a se disseminar no Brasil um hábito que está no DNA da população de muitos
outros países: o de doar seus préstimos onde quer que se façam necessários. É
verdade que a turma atual, em boa parte neófita no ramo, deseja mais do que
tudo respirar o mesmo ar de seu ídolo e ingressar numa tribo globalizada que
coleciona tantos broches quantos carimbos no passaporte.
Mas na natureza até do trabalho voluntário mais
inconsequente está embutido o germe da contribuição pessoal desinteressada, um
tipo de atitude a ser cultivada em uma sociedade. "A formação de uma tropa
de voluntários é um dos mais excepcionais legados das grandes competições para
um país", diz o australiano Craig McClatchey, um dos maiores especialistas
em gestão de eventos esportivos.
VEJA ouviu uma leva dos já aprovados, em sua maioria gente
que nos últimos anos se acostumou a pular de evento em evento mundo afora,
fazendo de graça todo tipo de serviço (inclui-se aí faxinar vestiários e lavar
pratos) em troca de conhecer novas culturas, aprender idiomas, engatar amizades
e formar uma rede de contatos global. Embora a Fifa (que já iniciou a peneira
para a Copa de 2014) e o Comitê Olímpico (que começará o recrutamento para os
jogos de 2016 no ano que vem) insistam na tecla de que favorecem a diversidade
e todos têm chance, é sabido que esses já iniciados largam com boa vantagem. O
processo de seleção - que, como nos grandes concursos, se baseia em testes de
conhecimento e dinâmicas de grupo - já funciona como treinamento,
familiarizando os candidatos com a enciclopédia das Copas e com o básico sobre
o funcionamento de um estádio. Logo eles são introduzidos a um mandamento
sagrado na bíblia do voluntariado esportivo: se a sorte se anunciar e você
estiver lado a lado com seu ídolo, DISCRIÇÃO (com letras maiúsculas mesmo) é a
palavra-chave.
Integrante do rol dos veteranos, o professor carioca
Anderson Lopes, 34 anos, já recebeu não apenas um, mas dois daqueles chamados
pelos quais tanta gente aguarda: ele foi aprovado nas seleções da Copa das
Conferederações e da Jornada Mundial da Juventude. "É uma chance única de
mostrar o Brasil aos outros e ao mesmo tempo estar nos bastidores", diz o
entusiasmado professor, que, dono de inglês fluente, virou uma espécie de
faz-tudo de atletas estrangeiros durante os Jogos Pan-Americanos de 2007. A
ideia de se inscrever no encontro de jovens católicos no Rio ele teve quando
foi à edição de Colônia, na Alemanha, em 2005, e esbarrou com voluntários aos
milhares. No Rio, Anderson se juntará a outros 65 000, turma que se move na
esperança de ver o novo papa de perto - uns poucos serão até recrutados para
ficar no entorno da comitiva do pontífice - e estar em meio a uma tribo
internacional que se aproxima na idade e no modo de pensar. Mais de 10 000
desses voluntários são estrangeiros - caso do economista espanhol José Marqués,
22 anos, escolado em Jornadas. Ele já está a toda no Rio, envolvido na área de
finanças. "Estou literalmente no paraíso", brinca em bom português. O
que espera do encontro? "Será um momento para desfrutar essa boa energia
carioca."
O contato entre os voluntários extrapola, e muito, o tema e
o lugar dos eventos dos quais tomam parte. Eles não só se juntam em redes
sociais na internet como se veem em toda parte. "Tenho amigos e casas no
mundo inteiro", diz a publicitária mineira Paula Modenesi, 22 anos. Aos
19, ela trabalhou na Copa da África do Sul, onde se hospedou numa casa com
outros dezessete colegas de voluntariado de diferentes países. Seu grande
momento: serviu de intérprete na coletiva da seleção brasileira depois do
fatídico jogo que a eliminou, nas quartas de final. "Fiquei impressionada
com o estado do goleiro Júlio César. Parecia que ele se culpava pela
derrota", lembra. Preparando-se para atuar na Copa das Confederações,
Paula já marcou férias para junho e ajeita a casa - onde exibe, ciosa, sua
coleção de pins e credenciais - para receber amigos estrangeiros que se
voluntariaram para as Copas no Brasil. Os que vêm de fora são a minoria: menos
de 5% do total de candidatos nos eventos esportivos.
Todos esses jovens não apenas não recebem como pagam -
bilhete aéreo, hospedagem, alimentação - para ter direito ao tão almejado
crachá. Mas acumulam experiência que pode dar um verniz decisivo ao currículo.
Em países com tradição de voluntariado, como os Estados Unidos, até a admissão
em universidades de alto prestígio pode ser facilitada - atenção: tanto para
americanos quanto para estrangeiros - por uma boa vivência de doação do tempo.
"Um trabalho voluntário enriquecedor é um item valorizado no processo de
seleção de novos alunos", diz Jason Dyett, diretor do escritório da Universidade
Harvard em São Paulo.
Não é raro também que voluntários com mais iniciativa sejam
absorvidos pela engrenagem oficial e saiam com emprego remunerado. A
catarinense Diana Maes, 28 anos, concluiu uma pós-graduação em marketing
esportivo, economizou 4 000 reais e se tornou voluntária do setor de marketing
da Fifa em Johannesburgo - tudo de caso pensado. "Vi aquilo como um
investimento", conta. Assim que voltou ao Brasil, conseguiu uma vaga na
área de projetos esportivos de um patrocinador. Em novembro, mudou de emprego:
atualmente cuida do treinamento dos gerentes dos escritórios do Comitê
Organizador Local da Fifa localizados nas cidades-sede da Copa do Mundo.
Do lado dos empregadores, o benefício financeiro é bem
concreto e essencial. Calcula-se que na Copa do Mundo, em que o orçamento total
beira os 900 milhões de reais, a Fifa fará com seus 15 000 voluntários uma
economia de 50 milhões de reais. "Sem o voluntariado, um evento desse
porte seria impagável", afirma o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, lembrando
a origem da atividade no Brasil: os 38 000 homens que se alistaram, por vontade
própria, para combater na Guerra do Paraguai (1864-1870), imortalizados em
placas de rua como os Voluntários da Pátria. O australiano Craig McClatchey
ainda reforça que não se está falando de mão de obra qualquer. "Em geral,
são jovens entusiasmados e orgulhosos do que estão fazendo, daí a alta
produtividade", observa. A relevância da atitude dos voluntários ficou
evidente na Olimpíada de Londres, no ano passado, que virou modelo a ser
seguido por causa do cronograma impecável, da organização eficiente - e da
atuação de seus 70 000 funcionários não pagos, elogiadíssimos pela simpatia,
pela vontade de ajudar e pelas respostas acertadas.
Nos megaeventos esportivos, os voluntários vão atuar em
postos médicos, centros de imprensa e bilheterias, administrar a agenda e as
idas e vindas das seleções. A eles se juntarão os aprovados no Brasil
Solidário, programa federal que cuida da seleção da legião mais visível: a dos
que prestam informação diretamente ao público em aeroportos, estádios e pontos
turísticos (50 000 dessas vagas começarão a ser preenchidas a partir de junho).
A descrição dos postos de trabalho joga uma piscina de água fria nos
esperançosos candidatos: o trabalho, em geral, não tem glamour. Se assistir a
um jogo ao vivo é difícil, chegar perto dos ídolos é mais ainda. Há
incumbências mortalmente entediantes. "No Pan de 2007, me puseram para
cuidar da tecnologia na arena de basquete. A gente checava se tinha papel nas impressoras
e depois ficava lá, parado, esperando alguém precisar de ajuda. Ninguém
precisou", relata Taís dos Santos, 24 anos, estudante de química em
Valinhos, no interior de São Paulo. Ela desanimou? Que nada - já está em
contagem regressiva para a Copa das Confederações. Alguns acabam aprendendo a
pegar no pesado. "Depois que comecei minha carreira de voluntário, passei
a achar natural fazer a faxina da casa", diz o publicitário Jadson
Almeida, 33 anos, de São Paulo, que financia as viagens com a venda on-line de
artesanato africano - negócio que foi adiante justamente com a ajuda das
amizades seladas na Copa de 2010.
As mazelas do ofício não são um fardo para as centenas de
milhares de pessoas motivadas e cheias de expectativas que estão contando os dias
para começar a festa de 2013, a de 2014 e a de 2016. Parafraseando adeptos de
exageros, só que com base na crua realidade dos números: é voluntário como
nunca se viu na história deste país. Nesse grupo, pouca gente tem tão sérias
intenções quanto a paranaense Nicolle Oliveira, 19 anos, que estuda gestão
ambiental e, toda engajada, está em busca de experiência na área. Nicolle foi
voluntária na Rio+20, a grande conferência sobre meio ambiente, tem trabalho já
engatilhado na gestão de resíduos de comunidades indígenas na Colômbia e quer
atuar na Copa das Confederações para ajudar na "conscientização ambiental
do público" - termo que em "voluntariês" significa reciclar. A
maior parte tem objetivos menos meritórios e mais alinhados com as prioridades
do paulista Rodrigo Colucci, 28 anos, fanático por futebol. Elas são: 1)
assistir a um jogo, "qualquer jogo"; e 2) aumentar sua coleção de 700
camisetas de times e eventos esportivos. "As próximas vão ser as das duas
Copas aqui", sonha. Independentemente da seriedade das intenções de cada
um, é certo que uma multidão de brasileiros terá a chance de tomar consciência
de que trabalho voluntário é também doar um pouco de si pelo bem comum - um
conceito que, se pegar, vai fazer muito bem ao Brasil.
EM JARGÃO ENGAJADO
Estudante de gestão ambiental, a paranaense Nicolle
Oliveira, 19 anos, enxerga além dos gramados. Ela quer trabalhar na Copa das
Confederações para ajudar na "conscientização ambiental do público".
Traduzindo: martelará a ideia da reciclagem. "Vai ajudar na minha
formação", aposta Nicolle, que já foi voluntária na Rio+20.
Ele até viu a cor do gramado
O publicitário Jadson Almeida, 33 anos, de São Paulo, teve
um momento de grande emoção como voluntário da Eurocopa de 2012, na Polônia.
Ele conseguiu ficar cara a cara com seus ídolos da seleção espanhola e até
recebeu sorrisos e acenos do time. "O crachá de voluntário lhe dá acesso a
bastidores que os outros não têm", diz o veterano, que vai repetir a dose
no Brasil.
Casa no mundo todo
A publicitária mineira Paula Modenesi, 22 anos, é integrante
de uma tribo de voluntários que vive conectada. "Tenho onde ficar em
qualquer canto do globo", diz. Ela retribuirá a hospitalidade recebendo em
sua casa uma turma de estrangeiros que vem ao Brasil doar seus préstimos na
Copa das Confederações.
Ela saiu empregada
Com uma pós-graduação em marketing esportivo, a catarinense
Diana Maes, 28 anos, raspou as economias para estrear como voluntária na Copa
da África do Sul. Tinha um objetivo: atuar no setor de marketing da Fifa.
Acabou arranjando emprego remunerado. "Hoje comando o treinamento dos
gerentes dos escritórios da Fifa localizados nas cidades-sede da Copa",
diz.
Dose dupla
O professor carioca Anderson Lopes, 34 anos, será voluntário
na Copa das Confederações e na Jornada Mundial da Juventude. Veterano, no Pan
de 2007 ele era uma espécie de faz-tudo e ciceroneava atletas estrangeiros no
Rio. "Levei uns cubanos para o mercado e eles se espantaram com a
quantidade de marcas de sabonete", lembra Anderson, que adora esse
"choque de culturas".
MANUAL DO CANDIDATO
Um grupo de veteranos ouvido por VEJA dá dicas que podem
aumentar as chances dos novatos na briga por uma vaga de voluntário nas
próximas seleções para a Copa do Mundo de 2014 e para a Olimpíada de 2016
1. Ao se inscrever, dê preferência a cidades menos
procuradas, como Brasília e Manaus. A concorrência dispara no circuito São
Paulo-Rio de Janeiro
2. Antes de se candidatar a vagas longe de casa, arranje
acomodação e enfatize isso. Ter onde ficar conta ponto na seleção
3. Mostre que encara o trabalho voluntário com muita
responsabilidade. Comece cumprindo prazos e sendo pontual no dia da entrevista
4. Nos formulários e na entrevista, não minta nem enfeite a
verdade
5. Programe-se para ter o dia inteiro livre durante toda a
duração do evento e, na etapa de seleção, deixe bem clara essa disponibilidade.
O turismo fica para depois
6. Saber trabalhar em grupo é fundamental. Nas respostas,
use sempre "nós" em vez de "eu"
Fonte: Planeta Sustentável