quinta-feira, 14 de março de 2013

A graça de trabalhar de graça


O volume de candidatos a uma vaga de voluntário em um dos megaeventos com sede no Brasil indica que pode vir a se disseminar aqui um hábito que está no DNA de outros países: doar o tempo em prol do bem comum

Reportagem de Gabriele Jimenez e Vanessa Cabral (Revista Veja)


Nas últimas semanas, mais de 250 000 brasileiros passaram boa parte do tempo na frente do computador, dormindo pouco e digitando muito. Trata-se do pontapé inicial no gigantesco processo de seleção em que meio milhão de pessoas vão disputar 200 000 cobiçadíssimos postos de trabalho ao longo dos próximos três anos. Tudo isso para não receber um tostão. O que atrai essa gente toda é a chance de pendurar um crachá de voluntário de um (dois, três) dos megaeventos internacionais com sede no Brasil. O volume de candidatos nas duas seleções prestes a ser encerradas - a da Copa das Confederações, em junho, e a da Jornada Mundial da Juventude, em julho - é indício de que pode vir a se disseminar no Brasil um hábito que está no DNA da população de muitos outros países: o de doar seus préstimos onde quer que se façam necessários. É verdade que a turma atual, em boa parte neófita no ramo, deseja mais do que tudo respirar o mesmo ar de seu ídolo e ingressar numa tribo globalizada que coleciona tantos broches quantos carimbos no passaporte.

Mas na natureza até do trabalho voluntário mais inconsequente está embutido o germe da contribuição pessoal desinteressada, um tipo de atitude a ser cultivada em uma sociedade. "A formação de uma tropa de voluntários é um dos mais excepcionais legados das grandes competições para um país", diz o australiano Craig McClatchey, um dos maiores especialistas em gestão de eventos esportivos.

VEJA ouviu uma leva dos já aprovados, em sua maioria gente que nos últimos anos se acostumou a pular de evento em evento mundo afora, fazendo de graça todo tipo de serviço (inclui-se aí faxinar vestiários e lavar pratos) em troca de conhecer novas culturas, aprender idiomas, engatar amizades e formar uma rede de contatos global. Embora a Fifa (que já iniciou a peneira para a Copa de 2014) e o Comitê Olímpico (que começará o recrutamento para os jogos de 2016 no ano que vem) insistam na tecla de que favorecem a diversidade e todos têm chance, é sabido que esses já iniciados largam com boa vantagem. O processo de seleção - que, como nos grandes concursos, se baseia em testes de conhecimento e dinâmicas de grupo - já funciona como treinamento, familiarizando os candidatos com a enciclopédia das Copas e com o básico sobre o funcionamento de um estádio. Logo eles são introduzidos a um mandamento sagrado na bíblia do voluntariado esportivo: se a sorte se anunciar e você estiver lado a lado com seu ídolo, DISCRIÇÃO (com letras maiúsculas mesmo) é a palavra-chave.

Integrante do rol dos veteranos, o professor carioca Anderson Lopes, 34 anos, já recebeu não apenas um, mas dois daqueles chamados pelos quais tanta gente aguarda: ele foi aprovado nas seleções da Copa das Conferederações e da Jornada Mundial da Juventude. "É uma chance única de mostrar o Brasil aos outros e ao mesmo tempo estar nos bastidores", diz o entusiasmado professor, que, dono de inglês fluente, virou uma espécie de faz-tudo de atletas estrangeiros durante os Jogos Pan-Americanos de 2007. A ideia de se inscrever no encontro de jovens católicos no Rio ele teve quando foi à edição de Colônia, na Alemanha, em 2005, e esbarrou com voluntários aos milhares. No Rio, Anderson se juntará a outros 65 000, turma que se move na esperança de ver o novo papa de perto - uns poucos serão até recrutados para ficar no entorno da comitiva do pontífice - e estar em meio a uma tribo internacional que se aproxima na idade e no modo de pensar. Mais de 10 000 desses voluntários são estrangeiros - caso do economista espanhol José Marqués, 22 anos, escolado em Jornadas. Ele já está a toda no Rio, envolvido na área de finanças. "Estou literalmente no paraíso", brinca em bom português. O que espera do encontro? "Será um momento para desfrutar essa boa energia carioca."

O contato entre os voluntários extrapola, e muito, o tema e o lugar dos eventos dos quais tomam parte. Eles não só se juntam em redes sociais na internet como se veem em toda parte. "Tenho amigos e casas no mundo inteiro", diz a publicitária mineira Paula Modenesi, 22 anos. Aos 19, ela trabalhou na Copa da África do Sul, onde se hospedou numa casa com outros dezessete colegas de voluntariado de diferentes países. Seu grande momento: serviu de intérprete na coletiva da seleção brasileira depois do fatídico jogo que a eliminou, nas quartas de final. "Fiquei impressionada com o estado do goleiro Júlio César. Parecia que ele se culpava pela derrota", lembra. Preparando-se para atuar na Copa das Confederações, Paula já marcou férias para junho e ajeita a casa - onde exibe, ciosa, sua coleção de pins e credenciais - para receber amigos estrangeiros que se voluntariaram para as Copas no Brasil. Os que vêm de fora são a minoria: menos de 5% do total de candidatos nos eventos esportivos.

Todos esses jovens não apenas não recebem como pagam - bilhete aéreo, hospedagem, alimentação - para ter direito ao tão almejado crachá. Mas acumulam experiência que pode dar um verniz decisivo ao currículo. Em países com tradição de voluntariado, como os Estados Unidos, até a admissão em universidades de alto prestígio pode ser facilitada - atenção: tanto para americanos quanto para estrangeiros - por uma boa vivência de doação do tempo. "Um trabalho voluntário enriquecedor é um item valorizado no processo de seleção de novos alunos", diz Jason Dyett, diretor do escritório da Universidade Harvard em São Paulo.

Não é raro também que voluntários com mais iniciativa sejam absorvidos pela engrenagem oficial e saiam com emprego remunerado. A catarinense Diana Maes, 28 anos, concluiu uma pós-graduação em marketing esportivo, economizou 4 000 reais e se tornou voluntária do setor de marketing da Fifa em Johannesburgo - tudo de caso pensado. "Vi aquilo como um investimento", conta. Assim que voltou ao Brasil, conseguiu uma vaga na área de projetos esportivos de um patrocinador. Em novembro, mudou de emprego: atualmente cuida do treinamento dos gerentes dos escritórios do Comitê Organizador Local da Fifa localizados nas cidades-sede da Copa do Mundo.

Do lado dos empregadores, o benefício financeiro é bem concreto e essencial. Calcula-se que na Copa do Mundo, em que o orçamento total beira os 900 milhões de reais, a Fifa fará com seus 15 000 voluntários uma economia de 50 milhões de reais. "Sem o voluntariado, um evento desse porte seria impagável", afirma o ministro do Esporte, Aldo Rebelo, lembrando a origem da atividade no Brasil: os 38 000 homens que se alistaram, por vontade própria, para combater na Guerra do Paraguai (1864-1870), imortalizados em placas de rua como os Voluntários da Pátria. O australiano Craig McClatchey ainda reforça que não se está falando de mão de obra qualquer. "Em geral, são jovens entusiasmados e orgulhosos do que estão fazendo, daí a alta produtividade", observa. A relevância da atitude dos voluntários ficou evidente na Olimpíada de Londres, no ano passado, que virou modelo a ser seguido por causa do cronograma impecável, da organização eficiente - e da atuação de seus 70 000 funcionários não pagos, elogiadíssimos pela simpatia, pela vontade de ajudar e pelas respostas acertadas.

Nos megaeventos esportivos, os voluntários vão atuar em postos médicos, centros de imprensa e bilheterias, administrar a agenda e as idas e vindas das seleções. A eles se juntarão os aprovados no Brasil Solidário, programa federal que cuida da seleção da legião mais visível: a dos que prestam informação diretamente ao público em aeroportos, estádios e pontos turísticos (50 000 dessas vagas começarão a ser preenchidas a partir de junho). A descrição dos postos de trabalho joga uma piscina de água fria nos esperançosos candidatos: o trabalho, em geral, não tem glamour. Se assistir a um jogo ao vivo é difícil, chegar perto dos ídolos é mais ainda. Há incumbências mortalmente entediantes. "No Pan de 2007, me puseram para cuidar da tecnologia na arena de basquete. A gente checava se tinha papel nas impressoras e depois ficava lá, parado, esperando alguém precisar de ajuda. Ninguém precisou", relata Taís dos Santos, 24 anos, estudante de química em Valinhos, no interior de São Paulo. Ela desanimou? Que nada - já está em contagem regressiva para a Copa das Confederações. Alguns acabam aprendendo a pegar no pesado. "Depois que comecei minha carreira de voluntário, passei a achar natural fazer a faxina da casa", diz o publicitário Jadson Almeida, 33 anos, de São Paulo, que financia as viagens com a venda on-line de artesanato africano - negócio que foi adiante justamente com a ajuda das amizades seladas na Copa de 2010.

As mazelas do ofício não são um fardo para as centenas de milhares de pessoas motivadas e cheias de expectativas que estão contando os dias para começar a festa de 2013, a de 2014 e a de 2016. Parafraseando adeptos de exageros, só que com base na crua realidade dos números: é voluntário como nunca se viu na história deste país. Nesse grupo, pouca gente tem tão sérias intenções quanto a paranaense Nicolle Oliveira, 19 anos, que estuda gestão ambiental e, toda engajada, está em busca de experiência na área. Nicolle foi voluntária na Rio+20, a grande conferência sobre meio ambiente, tem trabalho já engatilhado na gestão de resíduos de comunidades indígenas na Colômbia e quer atuar na Copa das Confederações para ajudar na "conscientização ambiental do público" - termo que em "voluntariês" significa reciclar. A maior parte tem objetivos menos meritórios e mais alinhados com as prioridades do paulista Rodrigo Colucci, 28 anos, fanático por futebol. Elas são: 1) assistir a um jogo, "qualquer jogo"; e 2) aumentar sua coleção de 700 camisetas de times e eventos esportivos. "As próximas vão ser as das duas Copas aqui", sonha. Independentemente da seriedade das intenções de cada um, é certo que uma multidão de brasileiros terá a chance de tomar consciência de que trabalho voluntário é também doar um pouco de si pelo bem comum - um conceito que, se pegar, vai fazer muito bem ao Brasil.

EM JARGÃO ENGAJADO
Estudante de gestão ambiental, a paranaense Nicolle Oliveira, 19 anos, enxerga além dos gramados. Ela quer trabalhar na Copa das Confederações para ajudar na "conscientização ambiental do público". Traduzindo: martelará a ideia da reciclagem. "Vai ajudar na minha formação", aposta Nicolle, que já foi voluntária na Rio+20.

Ele até viu a cor do gramado
O publicitário Jadson Almeida, 33 anos, de São Paulo, teve um momento de grande emoção como voluntário da Eurocopa de 2012, na Polônia. Ele conseguiu ficar cara a cara com seus ídolos da seleção espanhola e até recebeu sorrisos e acenos do time. "O crachá de voluntário lhe dá acesso a bastidores que os outros não têm", diz o veterano, que vai repetir a dose no Brasil.

Casa no mundo todo
A publicitária mineira Paula Modenesi, 22 anos, é integrante de uma tribo de voluntários que vive conectada. "Tenho onde ficar em qualquer canto do globo", diz. Ela retribuirá a hospitalidade recebendo em sua casa uma turma de estrangeiros que vem ao Brasil doar seus préstimos na Copa das Confederações.

Ela saiu empregada
Com uma pós-graduação em marketing esportivo, a catarinense Diana Maes, 28 anos, raspou as economias para estrear como voluntária na Copa da África do Sul. Tinha um objetivo: atuar no setor de marketing da Fifa. Acabou arranjando emprego remunerado. "Hoje comando o treinamento dos gerentes dos escritórios da Fifa localizados nas cidades-sede da Copa", diz.

Dose dupla
O professor carioca Anderson Lopes, 34 anos, será voluntário na Copa das Confederações e na Jornada Mundial da Juventude. Veterano, no Pan de 2007 ele era uma espécie de faz-tudo e ciceroneava atletas estrangeiros no Rio. "Levei uns cubanos para o mercado e eles se espantaram com a quantidade de marcas de sabonete", lembra Anderson, que adora esse "choque de culturas".

MANUAL DO CANDIDATO
Um grupo de veteranos ouvido por VEJA dá dicas que podem aumentar as chances dos novatos na briga por uma vaga de voluntário nas próximas seleções para a Copa do Mundo de 2014 e para a Olimpíada de 2016

1. Ao se inscrever, dê preferência a cidades menos procuradas, como Brasília e Manaus. A concorrência dispara no circuito São Paulo-Rio de Janeiro
2. Antes de se candidatar a vagas longe de casa, arranje acomodação e enfatize isso. Ter onde ficar conta ponto na seleção
3. Mostre que encara o trabalho voluntário com muita responsabilidade. Comece cumprindo prazos e sendo pontual no dia da entrevista
4. Nos formulários e na entrevista, não minta nem enfeite a verdade
5. Programe-se para ter o dia inteiro livre durante toda a duração do evento e, na etapa de seleção, deixe bem clara essa disponibilidade. O turismo fica para depois
6. Saber trabalhar em grupo é fundamental. Nas respostas, use sempre "nós" em vez de "eu"

Fonte: Planeta Sustentável
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