Como um atleta abriu mão de qualquer produto de origem
animal - incluindo ovos, leite e mel - e se tornou um dos maiores
ultramaratonistas do planeta.
Por quase duas décadas, o americano Scott Jurek tem sido uma
potência na elite da ultramaratona. E tão impressionante quanto suas inúmeras
vitórias - incluindo sete consecutivas na Western States, de 160 km, na
Califórnia - talvez seja o fato de ele ter alcançado esses feitos seguindo uma
dieta totalmente à base de alimentos de origem vegetal. Em seu livro de
memórias, Eat & Run: My Unlikely Journey to Ultramarathon Greatness (em
tradução livre, "Comer e correr: minha improvável jornada em direção à
excelência em ultramaratonas"), Jurek conta como virar vegano - adepto do
vegetarianismo radical, que risca do cardápio alimentos de origem animal - transformou
sua vida. Conheça agora um pouco de sua história e da relação entre veganismo e
performance.
Quando eu tinha 10 anos, meu pai me deu um rifle calibre 22
com cano de aço escovado. Suas instruções foram simples: se eu ferisse um
animal, era para matá-lo. Se matasse, deveria esfolar, estripar e comer. Na 6ª
série, eu já pescava vários peixes no lago depois do almoço, que eu limpava,
empanava em farinha de rosca, fritava na manteiga e devorava antes do
anoitecer. Eu sabia segurar um ovo entre os dedos indicador e mindinho para
quebrar com uma mão só. Fazia carne assada, preparava uma gororoba de macarrão
com atum e montava as lancheiras de almoço para meu irmão e minha irmã caçula
antes de irmos para a escola.
Minha mãe assava carne de porco, cozinhava frango e grelhava
bife. Eu adorava a sopa de frango com macarrão e nada me deixava mais feliz que
o purê de batatas besuntado com montes de manteiga. Quanto aos vegetais - com
exceção de milho em conserva -, eu nutria um sentimento intenso e uniforme:
detestava todos. Ninguém jamais poderia prever que eu cresceria para divulgar
os benefícios de uma dieta à base desses alimentos.
Nós vivíamos no fim de uma rua sem saída à beira da
floresta, a 8 km de Proctor, em Minnesota (EUA). Eu era magrelo e tinha pressão
alta e escoliose. Tirava notas boas e minha mãe me obrigava a vestir camisa
social. Eu gostava de esportes, mas evitei entrar para algum time no ginásio,
pois a ideia de pegar um ônibus com um monte de outros meninos me amedrontava.
Em parte porque eles tiravam sarro de mim, me empurravam e derrubavam. Uma vez
um garoto cuspiu em mim.
Craig Cameron Olsen
Vegetariano, Jurek se vira com um hambúrguer de lentilha e
cogumelos
Jamais apontariam para mim e diriam: "Ele vai se tornar
um atleta profissional". E como os valentões do ônibus não faziam parte
das equipes de esqui, e a prática envolvia muita técnica, parecia o esporte
ideal para mim. Em pouco tempo, tornei-me um dos melhores esquiadores do Ensino
Médio na minha categoria em todo o estado. Nessa época começou minha lenta
transformação de carnívoro inveterado em vegetariano e, mais tarde, em vegano.
Na verdade, prefiro o termo "baseado em vegetais" a vegano, porque
para muita gente vegano soa como "maluco". Quando fui para um
acampamento de atletas, serviam lasanha de legumes, todo tipo de saladas e pão
integral. Eu não tinha outra opção, então comi. E mal pude acreditar em como
era gostoso.
No inverno do último ano de colégio, fui viajar para esquiar
com meu amigo da equipe e seu padrasto. Eles levaram isopores e sacolas cheios
de macarrão integral, salada de espinafre e feijão preto. Paramos na casa de um
amigo e sua mãe nos serviu granola caseira feita com farinha de soja, germe de
trigo e flocos de cevada. Pedi a receita e, quando cheguei em casa, eu mesmo
preparei. Eu não estava comendo granola e salada porque queria um mundo melhor
(isso viria mais tarde) ou para ser legal com as vacas. Ainda hoje, se
precisasse, eu mataria e comeria um animal para sobreviver. Eu só estava
começando a perceber que, quanto mais comia "comida de hippie", mais
forte me sentia. Pelas manhãs, antes das corridas do Ensino Médio, comecei a
comer uma tigela grande de arroz integral que eu preparava na noite anterior.
Eu comia o arroz escondido, pois sabia as provocações que sofreria se alguém
visse.
Mas eu era um atleta e ainda comia carne - e, para dizer a
verdade, não conseguia imaginar ser um atleta sem comer carne. Ainda precisaria
de várias pessoas para me ajudar a ver que uma dieta à base de alimentos de
origem vegetal não só poderia me sustentar como também fazer de mim um atleta
mais rápido e potente.
PLANTANDO A SEMENTE
Uma das pessoas que me incentivaram a seguir o caminho do
veganismo foi uma garota que conheci no McDonalds. Eu estava pedindo dois
sanduíches. Ela queria um refrigerante. Ela andava de bicicleta, sorria muito e
usava sandálias. Estávamos em 1995, eu tinha 21 anos e cursava o terceiro ano
de fisioterapia. Ela era uma caloura de 18 anos, quase exclusivamente
vegetariana.
Eu havia parado de esquiar e começado a competir em corridas
de longa distância. Havia completado uma maratona e ficado em segundo lugar na
Minnesota Voyageur, uma ultramaratona de 80 km. Passei a primavera de 1995
treinando mais duro do que jamais havia treinado. Abri sulcos no chão, agredi
colinas, ataquei trilhas - quanto mais mato, melhor. Eu corria na chuva, na
neve e no calor lancinante. Corria com um propósito: ganhar.
E também me alimentava com um propósito. Comecei a colocar
queijo nos meus sanduíches, em vez de salame. Diminuí (um pouco) o pão com
linguiça no café da manhã. Contudo, para correr e ganhar, eu precisava de muita
proteína. E tudo que aprendi era que comer animais é a forma mais eficiente de
obter proteína. Então continuei engolindo sanduíches e batatas fritas no
McDonald's pelo menos quatro vezes por semana. Além disso, adorava fazer
churrasco. Com bifes grelhados, linguiças ou hambúrgueres nas mãos, devorava
uma lata de salgadinhos. Meu apelido era o Mestre da Grelha.
Craig Cameron Olsen
Caminho das pedras: Jurek treinando em Eldorado Springs,
Colorado (EUA)
Querendo ou não, eu ainda era um caipira de Minnesota. Quando
Leah - a loira de sandálias - aparecia com maçãs ou leite orgânicos e eu via o
preço na etiqueta, gritava: "Quanto você pagou por isso? O que tem aí,
ouro em pó?" Eu achava que estava sendo sensato. Pensava que estava me
alimentando de forma saudável.
Eu sabia que estava treinando feito um louco. E quando o dia
da ultramaratona Minnesota Voyageur finalmente chegou, em julho de 1995,
disparei na largada. Engoli a pista. Ninguém iria me superar. Mas alguém o fez.
Terminei em segundo lugar - mais uma vez. De alguma forma, eu tinha que correr
mais rápido. Mas não dava para treinar mais pesado. Era impossível correr mais.
Qual seria o segredo?
EM BUSCA DO TOPO
No ano seguinte, no verão de 1996, um velhinho doente me
contou parte do segredo. Ele tinha acabado de sair de uma sessão de
fisioterapia e voltou lentamente à sua cama. A cada passo doloroso, eu via sua
frustração, sentia sua raiva. Era meu último ano de faculdade e eu estagiava
naquele hospital. Era para eu ajudá-lo e nós dois sabíamos que eu não estava me
saindo muito bem. O senhor subiu na cama e olhou para a bandeja de almoço que
esperava por ele - um bolo de carne encharcado em algo marrom e espesso,
batatas empelotadas, ervilhas enlatadas com aparência suspeita. Sua expressão
dizia que uma bandeja de pedras daria na mesma. Ele não falou nada, mas poderia
muito bem estar gritando.
Como atleta, eu me dedicava ostensivamente à saúde em busca
de um ótimo desempenho. Como fisioterapeuta, eu deveria ajudar as pessoas a
cuidar de seus corpos, mas não levava suas dietas em consideração nem por um
segundo. Seria coincidência que pessoas doentes estivessem recebendo alimentos
de baixa qualidade, cheios de amido? Se uma dieta equilibrada pode tornar
alguém mais veloz, poderia uma dieta ruim nos fazer adoecer? O velho não falou
nada, mas eu podia escutar o segredo que ele me contava. Nossa alimentação é
questão de vida e morte. Você é o que você come.
Pensei e li muito sobre dieta e desempenho naquele verão. No
artigo "Cura espontânea", Andrew Weil dizia que o corpo humano possui
uma enorme capacidade de se cuidar, desde que ele mesmo seja cuidado, com boa
alimentação e sem ingestão de toxinas. Aprendi que a dieta ocidental padrão -
por um longo tempo a minha dieta, rica em produtos de origem animal e alimentos
à base de farinha refinada - tem sido associada a três das causas mais comuns
de morte nos Estados Unidos: doenças cardíacas, câncer e derrames.
UM CORTE PROFUNDO
Eliminar os alimentos processados e carboidratos refinados
não foi difícil. Carne e laticínios eram outros quinhentos. Eu não queria
consumir nenhum dos dois - por causa do estresse para os rins, do possível
aumento no risco de derrame e doenças cardíacas, sem contar as substâncias
químicas e os hormônios injetados nos alimentos e a degradação ambiental
causada pelas fazendas de gado -, mas eu estava levando a corrida mais a sério,
imaginando se eu tinha o necessário para competir em nível nacional.
E tinha consciência de que precisava de mais combustível
para queimar. Eu sabia que uma dieta baseada em vegetais significava mais
fibras, que aceleravam os alimentos através do trato digestivo, minimizando o
impacto das toxinas. A mesma dieta também significava mais vitaminas e
minerais; mais substâncias como licopeno, luteína e betacaroteno, que ajudam a
proteger o organismo contra doenças. E menos carboidratos refinados e gorduras
trans, ambos relacionados a doenças cardíacas. Mas será que uma dieta como essa
poderia fornecer proteína suficiente para alguém que desejava ser um atleta de
elite?
Eu dividi minhas apostas. A porcentagem de alimentos de
origem animal que eu comia caiu muito, mas não os restringi completamente. E
naquele verão de 1996, em minha terceira tentativa, eu ganhei a Minnesota
Voyageur. Não precisei treinar mais para isso. Até porque era impossível.
Apenas me alimentei com mais inteligência. Sabia que podia continuar enquanto
os outros paravam. Sabia que tinha boas pernas e pulmões bons. Agora eu não era
um mero corredor, era um atleta. E era alguém que tinha consciência daquilo que
comia.
Mas eu tinha vencido a Voyageur, uma competição estadual de
80 km. Como seria nas provas grandes, de 160 km, que atraem corredores não só
de outros estados, mas de outros países? Tudo o que eu lia sobre alimentação e
saúde dizia que uma dieta sem carne era saudável, mas eu tinha que descobrir
uma forma de obter proteína suficiente para unir minha alimentação nutritiva à
corrida de longa distância. Combinar fontes vegetarianas de proteína, como
legumes e grãos, a cada refeição parecia muito trabalhoso. Mas aprendi que
nosso organismo reúne os aminoácidos dos alimentos que comemos ao longo do dia.
Eu não precisaria sentar e fazer as contas a cada vez que comesse.
Descobri também que mesmo a conservadora Academia de
Nutrição e Dietética, dos Estados Unidos, afirmava que "dietas
vegetarianas bem planejadas, incluindo as totalmente vegetarianas ou veganas,
são saudáveis, nutricionalmente adequadas e podem fornecer benefícios à saúde
na prevenção e no tratamento de certas doenças. Dietas vegetarianas bem planejadas
são adequadas para pessoas em todas as fases do ciclo de vida, incluindo a
gestação, lactação, infância e adolescência, e para atletas". Essas duas
últimas palavras soaram como música para meus ouvidos de ultramaratonista
semivegetariano. Desde que eu comesse alimentos naturais variados, com ingestão
calórica adequada, obteria proteína completa em quantidade suficiente. Pelo
menos em teoria.
Justin Bastein
Gerente do hortifrúti: Frutas e vegetais frescos são
alimentos básicos na dieta de Jurek
DA TEORIA À PRÁTICA
Passei os dois ou três anos seguintes testando a teoria. Na
primavera de 1997, deixei de comer carne. Venci a Voyageur novamente. Em
seguida, cortei os peixes. Ganhei a Voyageur uma terceira vez e cheguei em
segundo lugar na minha primeira prova de 160 km, enfrentando as maiores feras
mundiais. Quando finalmente virei vegano, em 1999, perdi uma camada de gordura
- a camada resultante de comer biscoitos, bolos e pizzas de queijo que onívoros
e até vegetarianos vivem devorando. Aprendi que podia comer mais, apreciar mais
os alimentos (as frutas pareciam mais doces, os legumes, mais crocantes e
saborosos) e ficar mais magro do que jamais fora na vida. Aumentei a ingestão
de grãos integrais e legumes. Músculos que eu nem conhecia apareceram. Minha
pressão arterial e o nível de triglicérides caíram como nunca, meu HDL, o
chamado "bom colesterol", disparou para a maior taxa de todos os
tempos. Eu não tinha praticamente nenhuma inflamação nas articulações, nem após
percorrer dezenas de quilômetros, e, nas raras ocasiões em que torci o
tornozelo ou caí e bati o cotovelo ou o joelho, a dor passou com mais rapidez
que nunca. Eu corria de manhã, trabalhava de 8 a 10 horas por dia, depois
corria 16 km à noite - ainda assim, a cada dia despertava com mais energia.
Seria a comida que eu estava acrescentando - as vitaminas e
minerais? Ou seria o que eu não estava comendo - as proteínas em excesso, os
carboidratos refinados, as gorduras trans? Eu não conhecia a resposta, mas
nunca havia me sentido tão bem.
Scott Jurek vive hoje em Boulder, no Colorado, e segue como
embaixador do veganismo e grande nome da ultramaratona.
PROTEÍNA DIÁRIA
Conheça a dieta vegana de Scott
Barras de azuki e chocolate
À base de feijão, esse é o combustível de Scott, até nas provas
Ingredientes
1/2 colher de chá de óleo de coco
1 lata de 400 g de feijão azuki drenado
1 banana madura média
1/2 xícara de leite de amêndoa ou arroz
1/2 xícara de leite de coco light
1/2 xícara de farinha de cevada
1/4 de xícara de farinha de arroz
6 colheres de sopa de cacau em pó
3 colheres de sopa de xarope de bordo (maple syrup) ou mel
1 colher de chá de extrato de baunilha
1/2 colher de chá de sal marinho
1/3 xícara de passas
1/2 xícara de chocolate sem lactose (opcional)
Modo de fazer
Pré-aqueça o forno a 200 °C. Unte uma forma retangular de
uns 20 cm. Bata o feijão e a banana com os leites de amêndoa e de coco até
obter uma mistura homogênea e cremosa. Adicione as farinhas, o cacau, o xarope,
a baunilha e o sal, processando até ficar tudo bem misturado. Adicione as
frutas secas. Despeje a mistura na forma. Espalhe o chocolate por cima. Asse
por 35 a 45 minutos, até ficar firme. Deixe esfriar e corte em quadradinhos.
Rende 16 barras.
Calorias por barra: 121
Carboidratos: 23 g
Fibras: 1 g
Proteína: 2 g
Gordura: 2 g
CAFÉ DA MANHÃ
Vitamina de manga, morango e banana; castanhas; proteína
vegetal em pó, tais como de arroz integral, cânhamo, ervilha ou proteína de
soja fermentada
Laranjas, toranjas, peras ou outras frutas frescas
Torradas de grãos integrais germinados com manteiga de
castanhas
Dica - Grãos germinados são digeridos mais facilmente.
LANCHE
Uma barra energética Clif ou uma barra de frutas e nozes
orgânicas Kit¿s, que são feitas a partir de alimentos naturais.
Mix de castanhas cruas ou germinadas, como castanha de caju,
amêndoas e pistaches, mais frutas vermelhas e lascas de cacau.
Dica - Uma pequena dose desse mix é rica em antioxidantes.
ALMOÇO
Uma salada enorme com minha couve favorita (couve preta);
tempeh (pasta à base de soja), tofu ou edamame (grãos de soja dentro da vagem);
uma colher grande de homus, vegetais crus, como cenoura e nabo; sementes de
abóbora ou girassol e azeitonas.
Dica - Fontes de soja, o missô e o tofu são fáceis de
digerir.
JANTAR
Chili de feijão e grãos integrais, ou macarrão integral e
soja; lentilhas e quinoa; purê de batatas e tofu marinado ou feijão frito e
tortilhas de milho.
Sobremesa de soja, castanhas ou feijão (veja as barras de
azuki e chocolate, na página 65).
Dica - O trigo sarraceno é uma fonte de carboidratos
complexos e, quando combinado com feijão, forma uma proteína completa.
Fonte: Planeta Sustentável