segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

ARTIGO: Os caminhos das águas, sem tantos atropelos

(este artigo foi publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo, edição de 21/02/2014).

O noticiário da primeira quinzena de fevereiro foi dominado pelas notícias de apagões e suas ameaças, racionamentos  e desabastecimentos de água, crises da matriz energética etc. O racionamento já estava em quase 150 cidades, onde vivem mais de 6 milhões de pessoas. O uso médio de água ficava de 15 a 20% acima da média habitual de 150 litros diários por pessoa. O nível dos reservatórios do Sudeste e Centro-Oeste, abaixo da média do ano do racionamento, 2001. A questão da matriz energética já foi tratada em artigos anteriores - não é  caso de retornar. Melhor tentar ver com que caminhos poderão  ser enfrentadas de imediato as ameaças na área do fornecimento de água para a população.

É preciso começar pela questão das perdas de água por vazamentos e furos nas nossas redes públicas,  que estão próximas de 40% do total do que passa pelos condutos (ESTADO, 20/3/13) – o que é uma calamidade difícil de compreender, quanto mais de aceitar, no momento em que 7% da população nacional (mais de 15 milhões de pessoas) sequer recebem água tratada em suas casas. E 44% (mais de 80 milhões) não têm suas residências ligadas a redes de esgotos – o que é uma das causas principais da degradação de ambientes urbanos e das águas onde caem esses esgotos, junto com os que, coletados, não são tratados e têm o mesmo destino. Para universalizar as redes de esgotos em todo o país e de água, dizem os diagnósticos,   precisaremos de mais de R$300 bilhões em 20 anos. Mas estamos aplicando uma ninharia, diante da necessidade. Mesmo sendo possível caminhar com tecnologias muito mais baratas, como a do sistema de coleta de esgotos por ramais condominiais, mais de uma vez comentada neste espaço (hoje, atende a 15 milhões de pessoas e levou Brasília a ser uma cidade com praticamente todos os seus esgotos coletados).

Mas é difícil até imaginar que quase 40% da água levada a mais de 180 milhões de brasileiros (uso médio de 150 litros diários por pessoa – repita-se) se perde nas redes, antes de chegar a seu destino (o Japão perde menos 5%). E as causas são vazamentos e furos em redes antigas e/ou sem manutenção. Custaria algumas vezes menos reparar essas redes, mas em geral as administrações optam por obras novas (reservatórios, adutoras, estações de tratamento), mais visíveis, mais rentáveis eleitoralmente e preferidas pelas grandes empreiteiras, maiores financiadoras das campanhas. A cidade de São Paulo, que, segundo a Sabesp reduziu suas perdas para 25,6% da água distribuída, baixou seu prejuízo em R$275,8 milhões por ano (há números menos favoráveis, publicados na edição de18/2) Esse deveria ser um dos temas centrais das campanhas eleitorais, pois os eleitores é que pagam. E eles precisam saber que já existem equipamentos eletrônicos que detectam com precisão onde há furos e vazamentos e facilitam e apressam os reparos. Também precisam pressionar para que a rede de financiamentos, principalmente federal, que praticamente não atua nesse segmento das reparações, passe a fazê-lo. Hoje, como os reparos nas redes não são prioritários, é preciso  buscar água cada vez mais longe em todos os lugares, a altíssimos custos e tendo de enfrentar a disputa entre municípios.

Da mesma forma, é preciso enfrentar com a questão do uso das águas subterrâneas, inclusive no município de São Paulo. Boa parte do uso é feito sem licença e sem fiscalização  - ameaçando os aquíferos. Já há cidades como Ribeirão Preto (mais de 500 mil habitantes) que não usam um só litro de água superficial, por causa da poluição. Ou Manaus, cercada por dois dos maiores rios do país (Negro e Solimões).

E que se pode dizer de uma megalópole como São Paulo, com tais problemas de abastecimento, ter de conviver com a impossibilidade de usar a água de rios como o Tietê e o Pinheiros, assoreados e poluidos? Na infância, o autor destas linhas chegou a assistir a uma “Travessia de São Paulo a nado no rio Tietê”; hoje, os competidores correriam  riscos altíssimos com a poluição.

Como aceitar também o assoreamento impedindo o uso desses rios como via de transporte ? Ou com o fato de centenas de milhares de pessoas viverem em áreas de preservação, à beira de reservatórios de abastecimento, em casas sem estrutura sanitária ? Ou ainda que não se cumpra a legislação que obriga, em muitos municípios, a manter , em cada imóvel, principalmente industriais e comerciais, espaços para a infiltração de água de chuva (impedindo inundações) e manutenção de depósitos  que permitam o reuso dessa água, como lembra o projetista Jack Sickermann – acentuando a responsabilidade de arquitetos e engenheiros e  lembrando que o retorno dos investimentos é cada vez mais rápido, assim como o custo é gradativamente menor.

Da mesma forma, como entender que não se priorizem projetos para a adequação do sistema de drenagem urbana nas cidades, onde, insuficientes e desgastados, contribuem para inundações – ao invés de serem integrados em grandes sistemas de reuso da água para fins compatíveis ?

Também é preciso dar prioridade à questão do uso de água em pivôs centrais na zona rural, com grande parte deles perdendo (com a aspersão a grandes alturas) boa parte do que capta. Essa perda não repõe todo o líquido no subsolo, por causa da evaporação e da compactação da superfície do solo  E ainda contribui para levar altos volumes de nitrogênio para os rios e para mar, onde contribuem para a multiplicação de algas.

Enfim, há muitos caminhos a serem trilhados, que podem evitar tanto o desabastecimento como o racionamento, sem ter de recorrer necessariamente a obras caríssimas. E cabe à comunicação debater tudo isso com as comunidades. A estas, cabe optar pelos caminhos mais adequados e menos caros que lhes apontem. Não é possível seguir numa trilha em que as soluções pareçam impossíveis ou só viáveis a custos estratosféricos. Pode haver custos adequados.
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