O tiro de escopeta que cravou 42
grãos de chumbo no peito do sindicalista Chico Mendes poucos dias antes do
Natal de 1988 tirou-lhe a vida e fez surgir dois mitos. O primeiro conferiu ao
seringueiro uma aura heroica, de mártir das matas de Xapuri, no Acre. O segundo
se refere à nova ideologia que se propagou a partir das causas defendidas por
Chico Mendes. Para ele, o modo de vida extrativista seria capaz de proporcionar
um sustento digno aos povos da floresta sem prejuízo ambiental, desde que
amparado pelo governo. Ou seja, em vez de derrubar a mata para dar lugar à
agropecuária, a população local poderia viver da coleta de seivas e frutos e da
venda da madeira de árvores mais velhas. No jargão científico, esse modelo é
chamado de desenvolvimento sustentável e, para se tornar realidade, precisa
alcançar três objetivos: ser economicamente viável, preservar o ecossistema e
reduzir a pobreza das pessoas que vivem no entorno. Essa agenda orientou
inúmeros projetos de ONGs e governos, além de pautar encontros internacionais
como a Eco 92 e a Rio+20, no Rio de Janeiro. Agora, um dos maiores
patrocinadores desses projetos, o Banco Mundial, concluiu que a tentativa de
aplicar o conceito da sustentabilidade a áreas florestais quase nunca dá certo.
O surpreendente mea-culpa está em um relatório feito para uso interno da
instituição, ao qual VEJA teve acesso, e que foi discutido em uma reunião
fechada na sede do banco em Washington, há duas semanas.
O documento é o resultado de um
trabalho louvável do banco para avaliar os efeitos dos 2,6 bilhões de dólares
gastos em 289 projetos em florestas de 75 países, entre 2002 e 2011. O
investimento serviu para aumentar a área de reservas ao redor do mundo, mas, de
maneira geral, não conseguiu evitar a degradação da biodiversidade e de pouco
ou nada adiantou para elevar o padrão de vida da população. Isso ocorreu também
no Brasil, onde a instituição financiou a demarcação de 45 milhões de hectares
de terras indígenas e outros 26 milhões em reservas ambientais. As conclusões
do relatório não foram baseadas em estatísticas de renda ou de desenvolvimento
humano, mas em levantamentos feitos pelos especialistas do Banco Mundial em
visitas às comunidades que deveriam ser beneficiadas. Com isso, conseguiu-se
uma análise muito mais próxima da realidade, pois são raros os países com
indicadores sociais confiáveis para grupos populacionais tão pequenos quanto
aqueles formados pelos que vivem dentro ou ao redor de reservas.
O relatório aponta como uma das
causas do fracasso a insistência de ONGs e de governos em considerar que as
atividades de subsistência e extrativistas são a melhor opção para o
desenvolvimento das comunidades pobres. Para os auditores do Banco Mundial,
pescar o peixe que se come ou catar coquinho para vender a um preço simbólico
não deveria ser o objetivo final dos projetos, apenas um meio para as pessoas
sobreviverem enquanto se organizam para uma atividade econômica capaz de
produzir mais riqueza. Em outras palavras, na maioria dos programas financiados
pelo banco, os moradores das reservas garantem o mínimo para sobreviver, mas
não conseguem melhorar de vida.
Como a origem da pobreza não foi
erradicada, as populações envolvidas nos projetos seguem dependentes da ajuda
de ONGs e do governo local. "Evidentemente, não esperamos que os povos da
floresta fiquem ricos, mas é extremamente frustrante saber que, se os recursos
forem cortados, eles serão incapazes de seguir em frente sozinhos", admite
um funcionário de uma entidade internacional que, a exemplo do Banco Mundial,
financia projetos "sustentáveis" em florestas brasileiras.
Estima-se que 70 milhões de
pessoas vivam em florestas e outros 735 milhões em áreas rurais próximas. o
Banco Mundial tinha por objetivo não apenas melhorar a vida das famílias
diretamente ligadas aos seus projetos, mas também a de quem estivesse no
entorno. Nesse quesito, a decepção foi ainda maior. Mais de três quartos das
iniciativas não foram capazes de expandir seus efeitos para além das áreas
protegidas. Nas franjas das reservas, as florestas continuam sendo derrubadas.
isso ocorre mesmo nos casos bem-sucedidos de uso dos recursos naturais. Na
reserva de Mamirauá, no Amazonas, por exemplo, a pesca artesanal do pirarucu,
combinada com o ecoturismo, garante a manutenção da espécie e o sustento da
população. fora de seus limites, os ribeirinhos usam técnicas tão predatórias
para capturar os peixes que acabam anulando o impacto positivo do programa
financiado, entre outras instituições, pelo Banco Mundial. o mais espantoso nas
tentativas de transformar a miragem da sustentabilidade florestal em realidade
é que quase sempre se gasta muito para beneficiar pouca gente. em 2008, o
governo do Acre inaugurou uma empresa estatal de preservativos, a Natex. A
ideia era agregar valor ao látex extraído pelos seringueiros de Xapuri. erguida
com recursos do Banco interamericano de Desenvolvimento (BID) e do BNDES, a
fábrica, em vez de criar riqueza, tornou-se um pretexto para pagar subsídios a
duas centenas de famílias extrativistas. Na Libéria, na África, o Banco Mundial
planejou gastar 1,6 bilhão de dólares até 2011 num projeto de extração
sustentável de madeira que rendeu apenas 10 milhões de dólares e só empregou
0,7% da população local.
A discussão sobre o impacto
social e ambiental das iniciativas do Banco Mundial ocorre há quase duas
décadas. A instituição foi a primeira a medir com seriedade o efeito de seus
investimentos, porque há uma pressão grande dos países que colaboram para o seu
caixa. eles cobram resultados ambientais e sociais concretos.
"Paradoxalmente, essa é uma preocupação que não passa pela cabeça dos
funcionários do banco que decidem os empréstimos, pelo simples fato de que eles
subirão mais rápido na carreira do banco se gastarem mais", diz o
ambientalista Fabio Feldman, de São Paulo. Para Paulo Barreto, pesquisador
sênior do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e um dos
cientistas consultados pelos auditores do Banco Mundial para a elaboração do
relatório, os efeitos multiplicadores que eram esperados pela instituição
ficaram comprometidos, no caso da Amazônia, por causa da falta de
infraestrutura adequada, de formação de mão de obra e de regularização
fundiária.
"Não há segurança jurídica
na região, e a recuperação de terras degradadas é inviabilizada pela falta de
governança. os projetos de infraestrutura existentes não levam em conta as
necessidades das populações locais e há uma carência de mão de obra
qualificada. Sem a solução desses problemas, fica difícil atrair investimentos
para a Amazônia", diz Barreto.
Dois países são elogiados no
relatório do Banco Mundial por seus programas de preservação ambiental: Costa
Rica e México. Ambos têm um sistema de pagamento aos produtores rurais e aos
indígenas que não desmatarem. Apesar de esse modelo de incentivo existir em
vários países, inclusive no Brasil, os mexicanos e os costa-riquenhos fazem
melhor porque dão prioridade às áreas em que a pressão econômica pela
devastação é maior. e, ao contrário do que ocorre no resto do mundo, o
pagamento é alto o suficiente para garantir que a população considere mais
proveitoso manter a floresta de pé do que transformá-la em pastagens ou
lavouras. e não impede ninguém de continuar catando coquinho.
MIRAGENS NA FLORESTA
Os visionários que tentaram levar
desenvolvimento econômico e progresso social à Amazônia brasileira raramente
foram bem-sucedidos. Em 1928, o americano que popularizou o automóvel, Henry
Ford, fundou nas margens do Rio Tapajós, no Pará, a cidade de Fordlândia. O
magnata queria plantar 2 milhões de seringueiras para criar um polo de produção
de borracha. Seu objetivo era ficar independente dos fornecedores ingleses, que
detinham o monopólio do produto. O investimento de dezenas de milhões de
dólares seria depois custeado pela borracha, pela madeira e pelos minerais
extraídos da região. A cidade, erguida ao estilo americano e com casas de
madeira, chegou a ter 25 000 habitantes, 5 000 deles empregados na iniciativa.
Havia esgoto, luz elétrica, cinema, campo de golfe e um dos hospitais mais
avançados do Brasil. Em 1936, Ford fundou outro povoado, Belterra, também
próximo do Tapajós. O projeto fracassou. As árvores foram destruídas por pragas
desconhecidas, que não existiam na Malásia nem na Indonésia. Ford gastou quase
300 milhões de dólares, em valores atuais, em sua empreitada tropical. Os 31
000 habitantes que hoje vivem em Aveiro, onde ficava Fordlândia, e Belterra se
dedicam à agricultura e à pecuária. Outro que investiu na floresta foi o
bilionário americano Daniel Keith Ludwig, em 1967. Ele decidiu montar um
projeto de produção de papel, madeira e alimentos numa área quase do tamanho do
estado de Sergipe, na divisa entre Pará e Amapá. Teve início assim o Projeto
Jari, nome do rio que corta a região. Os problemas começaram a surgir nos anos
seguintes. Ludwig enfrentou o protesto de trabalhadores contra as condições de
trabalho. Além disso, a gmelina, espécie selecionada para a produção da
celulose, era vulnerável a pragas tropicais e precisou ser substituída por
outra. O bilionário deixou o Brasil depois de ter um prejuízo de mais de 1
bilhão de dólares. Em 2000, o grupo Orsa comprou o complexo do Jari. A fábrica
de celulose foi fechada em janeiro deste ano para ser modernizada, pois as
instalações ainda eram da época de sua fundação.
Fonte: Planeta Sustentável