Numa manhã recente de primavera
em uma feira livre num subúrbio ao leste de Paris, mais ou menos 70 pessoas,
jovens e velhas, estavam diante de fileiras de mesas, cortando e fatiando
pilhas de frutas e verduras coloridas, preparando um bufê feito inteiramente
de... lixo. Verdade.
A maioria dos ingredientes desse
banquete tinha sido resgatada do lixo no dia anterior pelo grupo de voluntários
Disco Soupe, que combate o desperdício de alimentos em toda a França.
De acordo com os organizadores,
cada evento do Disco Soupe recupera entre 80 e 200 quilos de vegetais em
perfeito estado que, de outro modo, acabariam no lixo.
Um relatório recente do britânico
Instituto de Engenheiros Mecânicos estimou que até 50% dos hortifrútis são
jogados fora todos os anos. São até 2 bilhões de toneladas de alimentos que
nunca chegam a ser consumidos.
Para combater esse desperdício
colossal, o Disco Soupe, criado há pouco mais de um ano, inspirou-se num evento
alemão promovido uma vez por ano em Berlim. Mas o grupo parisiense multiplicou
os eventos em escala menor, primeiro na capital e seus arredores e depois em
todo o país.
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E seus membros acrescentaram um
toque francês que estava em evidência no almoço na feira livre naquele sábado:
comida fresca e boa, primorosamente preparada. A refeição --gratuita para
qualquer pessoa que aparecesse, tivesse ela contribuído ou não-- consistiu em
uma enorme travessa de guacamole, saladas verdes com funcho e vinagrete de
tomates, um caldeirão de sopa cremosa de abobrinha e uma sobremesa de bagas e
maçãs.
Muitos dos comensais tinham
passado horas fatiando os legumes, tudo ao ritmo de uma banda de metais com 15
instrumentistas. Laura Thierry, 28, uma das voluntárias do Disco Soupe,
descreve os eventos comunitários como "festas de aproveitamento do desperdício
alimentar".
"Para mim, os eventos são um
pouco poéticos e absurdos", disse a voluntária, que é consultora
empresarial especializada na criação de ambientes de trabalho colaborativos.
"Preparamos comida em quantidades enormes, há música e é de graça."
Todos querem participar, segundo
ela. "As pessoas querem cortar e descascar muito rápido. Isso realmente
gera uma energia coletiva que é sempre bela e poderosa."
O Disco Soupe obtém muito de suas
frutas e verduras dos vendedores atacadistas num gigantesco centro de
distribuição em Rungis, na zona sul de Paris. Os comerciantes doam os
hortifrútis que consideram "invendáveis", por não serem
suficientemente perfeitos, estarem próximos da data de vencimento ou serem excedentes
que não foram vendidos.
No caso da salada, as folhas
usadas eram restos de alfaces compradas por um restaurante parisiense de alta
categoria que emprega apenas os corações das alfaces. As folhas externas,
comestíveis, geralmente são jogadas no lixo.
Os participantes também são
incentivados a esvaziar suas geladeiras, trazendo legumes ou frutas que de
outro modo poderiam passar do ponto. Uma mulher viu um cartaz do Disco Soupe na
padaria de seu bairro e doou um saco de hortifrútis que teriam estragado
enquanto ela tirava férias.
Em 2012, ano em que o Disco Soupe
começou, o grupo organizou cerca de 12 eventos na área de Paris em apenas nove
meses. Sua meta para 2013 era chegar a 13 cidades. Em junho, mais ou menos 40
eventos do Disco Soupe já tinham sido promovidos em quase 20 cidades, com a
ajuda de 200 voluntários.
"Não tivemos a intenção de
ganhar adesões e liderar", diz Thierry. "Só queríamos ajudar pessoas
a fazerem a mesma coisa que estávamos fazendo em Paris. Isso criou um espírito
comunitário real."
A ideia veio do Schnippel Disko,
evento promovido anualmente em Berlim para celebrar o movimento do "slow
food" e a música e que atrai centenas de pessoas. Segundo Thierry, apenas
entre 50 e 75 pessoas vieram para cada um de vários eventos do Disco Soupe
promovidos em Paris em abril. Ela prefere o formato menor porque assim os
voluntários podem conversar com os participantes sobre a proposta principal do
grupo: reduzir o desperdício de alimentos, aproveitando ao máximo o que cada um
tem em sua despensa.
Durante o almoço do sábado em
Montreuil, Geneviève Aubin, que estava participando pela primeira vez,
comentou: "É gostoso preparar a refeição e comê-la juntos. A comida é de
alta qualidade, e o evento é bom para a comunidade."
O ambiente dos eventos é sempre
animado e cordial, mas muda segundo o local do evento. Em Belleville, bairro da
zona nordeste de Paris, o evento do Disco Soupe teve brincadeiras para as
crianças, workshops de arte com a utilização de sacos plásticos reciclados, e
uma dupla tocando melodias em realejos. Em outro evento no subúrbio de
Villejuif, um antigo depósito industrial cheio de trabalhos de arte e objetos
diversos atraiu um público mais jovem e descolado.
Cada evento do Disco Soupe custa
aos organizadores cerca de cem euros, gastos principalmente em pratos e tigelas
ecológicos e outros artigos de cozinha. Os custos maiores incluem o seguro e o
treinamento em higiene alimentar. Para financiar os custos administrativos e
dar início ao movimento na França, os organizadores lançaram uma campanha no
site de financiamento coletivo Kiss Kiss Bank Bank, em dezembro passado. Depois
de 45 dias de levantamento de fundos on-line, o grupo tinha ultrapassado em 13%
sua meta de angariar US$ 5.000: tinha conseguido US$ 5.660.
A campanha chamou a atenção de
pessoas em outras cidades, interessadas em organizar seus próprios grupos.
Quando a campanha de levantamento de fundos começou, as festas de
aproveitamento de alimentos desperdiçados só existiam em cinco cidades
francesas. Ao final, 15 cidades já tinham aderido à proposta.
O grupo de Paris é composto de
dez organizadores principais e uma equipe de 30 voluntários. Aqueles que já têm
em comum a paixão pela comida e a maximização de recursos usam o Disco Soupe
como oportunidade para trabalhar com pessoas que compartilham seus interesses,
contribuir para a comunidade e ensinar outros sobre a sustentabilidade
alimentar.
Enquanto o movimento ganha força,
Thierry diz que quer atrelar a mesma energia de seu "formato inovador e
participativo" para criar vínculos com outras iniciativas de reciclagem,
visando conscientizar pessoas sobre a sustentabilidade e a redução de
desperdício.
"O importante é
educar", diz ela. "O melhor não é fazer as pessoas se sentirem
culpadas por desperdiçar alimentos. É melhor fazer algo com alegria. A melhor
maneira de combater o desperdício de alimentos é conversar com as pessoas e
converter o que se faz em um ato positivo para a sociedade."
Tradução CLARA ALLAIN
Fonte: Folha de São Paulo